Abiclor

Água potável e saneamento em prol da dignidade humana

39,2% de toda água potável captada não chega de forma oficial às residências do país, num volume equivalente a 7,5 mil piscinas olímpicas de água tratada desperdiçada diariamente.

“A água de boa qualidade é como a saúde ou a liberdade: só tem valor quando acaba.” A frase do escritor Guimarães Rosa, além de sábia, nunca foi tão atual. Em pleno século 21 nunca debatemos tanto as adversidades que assolam o planeta e a vida, em especial os temas ambientais, como a água e as mudanças do clima. Escrever sobre a incerteza quanto à quantidade e qualidade das águas no planeta Terra, formado por ¾ de água, por exemplo, até parece estranho, mas o planejamento hídrico baseado em décadas de história e dados acumulados já não nos permitem prever onde teremos ou não chuvas. Mesmo no Brasil, que detém cerca de 12% de toda a água doce do mundo, não estamos mais confortáveis. Nos sentíamos privilegiados por morar numa “caixa d’água”, mas aos poucos estamos nos igualando às incertezas dos locais mais secos, como Espanha, Austrália, Israel, Índia, Paquistão, México, Chile, Turquia e a Califórnia.

Mas se moramos num país com água em abundância, por que ter receio da falta? O risco vem de fatores geográficos e de como cuidamos deste bem. Temos grande discrepância entre a distribuição geográfica da água e a concentração da população, ou seja, muita água na Região Norte (70% deste recurso), onde temos apenas 4,1 habitantes por km2 (IBGE, 2010), e apenas 6% no Sudeste com seus 87 hab/km2. O Nordeste, assolado pela escassez histórica, tem 3% da água e 34 hab/km2, ou seja, é a região mais crítica e com menos soluções à vista.

O país ainda perde uma quantidade gigante de seus recursos hídricos, 39,2% de toda água potável captada não chega de forma oficial às residências do país, num volume equivalente a 7,5 mil piscinas olímpicas de água tratada desperdiçada diariamente. Uma ineficiência brutal no sistema de distribuição das cidades, causada por vazamentos, roubos, fraudes e erros de medição. E se pensarmos na relevância da água potável para a saúde humana, é fundamental lembrar que a potabilização da água é considerada um dos maiores avanços de todos os séculos, em especial a adoção de produtos e tecnologias que eliminam microrganismos que ao longo da história matavam milhões de pessoas. A adoção do uso do cloro, por exemplo, é considerada uma das grandes responsáveis pela longevidade da vida humana. Infelizmente, a água potável ainda é um luxo para milhões no mundo, mas mesmo a água in natura ainda carece a muitos.

Em saneamento básico, o Brasil, entre as nações com maior PIB, possui uma infraestrutura que países desenvolvidos tinham no século 19. Mais de 35 milhões de brasileiros não têm água potável sequer para lavar as mãos em meio a uma das maiores pandemias da história, principalmente os que vivem nas favelas, áreas isoladas, irregulares ou rurais, no semiárido e Amazônia, onde a COVID-19 tem sido mais brutal. Temos mais de 100 milhões sem coleta e tratamento de esgotos; na Região Norte, berço das águas, apenas 1 em cada 10 pessoas possui coleta de esgotos; 3 a cada 10 no Nordeste e mesmo em estados mais ricos.

Por não ter saneamento em muitos locais, o país perde com o lançamento de esgotos no solo e nos rios, num grande impacto ambiental e à saúde pública. Em 2019, foram mais de 250 mil internações por diarreias, mas também verminoses, parasitoses, dermatites, esquistossomose, leptospirose, dengue e outras doenças mais endêmicas nas áreas sem saneamento básico. Jogamos diariamente mais de 5,3 mil piscinas olímpicas de esgotos na natureza.

As consequências se desdobram em outros impactos, como o afastamento escolar que faz com que as crianças não tenham desempenho escolar compatível com outras nascidas em condições sanitárias melhores. No Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), por onde muitos jovens têm suas chances de entrar na universidade pública, o Painel Saneamento Brasil apontou que os candidatos que habitam residências com banheiro tiveram nota média de 526,06 pontos, enquanto os que não tinham foi de 472,95.

Enfim, o Brasil precisa evoluir rapidamente em saneamento básico para proteger nossas águas. Que bom que acabamos de aprovar um novo Marco Legal que possui o potencial de investimentos da ordem de R$ 500 a R$ 700 bilhões em 20 anos, com a meta de garantir que até 2033, 99% da população brasileira tenha água potável e 90% coleta e tratamento de esgoto. Garantir água limpa em toda a sua plenitude, portanto, não é relevante apenas por gerar desenvolvimento, mas principalmente por garantir a vida e a dignidade humana.

Autor: Édison Carlos, presidente executivo do Instituto Trata Brasil