Abiclor

ENTREVISTA: Rosana Abi-Saab, especialista em Água e Saneamento dos Médicos Sem Fronteiras (MSF)

MSF contribui com iniciativas de acesso a saneamento básico e água potável para prevenir doenças nas regiões em que atuam.

O relatório Progresso sobre água potável para as famílias, saneamento e higiene 2000-2020, produzido em conjunto pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), indica avanços no acesso da população mundial aos serviços de água, saneamento e higiene nos últimos 20 anos.

Porém, o relatório também traz um alerta de que, sem investimentos urgentes pelos países, bilhões de pessoas em todo o globo terrestre correm o risco de continuar sem esses serviços ou em situações de acesso precário a eles.

No Brasil, os dados também são preocupantes. Informações compiladas pelo Instituto Trata Brasil revelam que quase 35 milhões de brasileiros não têm acesso à água potável e aproximadamente 100 milhões não possuem serviço de coleta de esgoto.

A falta de saneamento básico afeta a qualidade de vida e a saúde das pessoas, criando condições para a proliferação de doenças. Em entrevista ao site Saneamento Já!, Rosana Abi-Saab, especialista em Água e Saneamento da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF), explica como a privação a esse direito básico podem prejudicar comunidades inteiras e como os médicos da rede agem para minimizar os impactos dessas condições nas regiões em que atuam.

Desde 2018, Rosana já participou de seis projetos com o MSF em países como Nigéria, Moçambique, Brasil, Venezuela e Bolivia.

#SJ: Quais os principais impactos causados pela falta de fornecimento de água potável?

Rosana: A falta de água limpa pode facilitar a propagação de doenças. Fontes de água inseguras podem estar contaminadas com diferentes agentes infecciosos como vírus, bactérias, parasitas e metais pesados que afetam diretamente a saúde das pessoas. Só para dar um exemplo, as doenças diarreicas agudas são transmitidas pela água e, quando não tratadas, têm alta letalidade entre crianças de até 5 anos. Por outro lado, o acesso restrito a água, ou a pouca quantidade do recurso disponível, gera situações precárias de higiene, que é responsável por numerosas infecções de pele.

Moçambique, por exemplo, é uma área endêmica da bactéria Vibrio cholerae, por isso os surtos de cólera não são incomuns. Muitas mortes causadas pela doença podem ser evitadas com campanhas de promoção de saúde, tratamento constante da água com cloro e por meio de altas temperatura (fervura) ou raios UV.

#SJ: A falta de infraestrutura de coleta de esgoto é outro grave problema. Quais as principais doenças que acometem a população pela falta desse tipo de estrutura?

Rosana: A falta de coleta de esgoto está diretamente relacionada com a qualidade das fontes de água utilizadas pelas populações. Sem saneamento, os dejetos humanos, resíduos hospitalares e contaminantes comprometem a qualidade do recurso hídrico que as pessoas consomem, provocando surtos e epidemias de doenças como cólera, salmonela, amebíases, etc. Por isso, nos projetos do MSF, nós trabalhamos criando pontos de água potáveis ou tratando as fontes disponíveis. Também levamos saneamento, construindo latrinas ou banheiros para evitar a disseminação de doenças.

#SJ: O lixo se torna outro grande ponto de atenção. Quais os principais problemas causados à saúde humana pela falta de coleta e destinação correta de resíduos sólidos?

Rosana: Neste caso, trabalhamos também para o correto manejo de resíduos. No MSF damos atenção prioritária aos resíduos produzidos por atividades médicas e tomamos as medidas necessárias para o correto armazenamento, transporte, processamento e disposição final do lixo hospitalar, minimizando os riscos que podem causar à população e aos profissionais da saúde. Para o lixo doméstico, priorizamos o armazenamento correto e o controle de vetores, evitando a propagação de doenças transmitidas por insetos e mamíferos, que transmitem dengue, febre amarela, malária, tifo, leptospirose entre outras enfermidades.

#SJ: A falta de infraestrutura de saneamento básico acaba gerando ou aumentando os casos de epidemias? Como a Instituição age nesses casos? Como é a atuação dos Médicos Sem Fronteiras em lugares onde os principais problemas são causados pela privação da população ao saneamento básico?

Rosana: Sim, sem dúvidas a falta de infraestrutura de saneamento básico pode gerar epidemias e surtos de doenças. Neste contexto, nós trabalhamos para prover água potável às comunidades, criando pontos de água segura ou até tratando a água. Outro ponto de ação importante é o controle de vetores para evitar a disseminação de doenças transmitidas por insetos e ratos, por exemplo. Nós ainda contamos com o apoio de promotores de saúde, que trabalham com a parte de educação e de conscientização das comunidades sobre as boas práticas de higiene.

Em lugares com pouca infraestrutura, avaliamos a melhor opção para aprimorar as condições de saneamento, que são adaptadas às práticas culturais locais. Em algumas regiões, a comunidade tem maior aceitação por latrinas e, em outras, por vasos com descarga.  Avaliamos também as condições do terreno e do solo para a disposição final das águas residuais. Às vezes é possível conectar estas estruturas sanitárias à rede urbana de esgoto já existente ou construímos fossas de infiltração. Em alguns casos, o mais adequado são fossas sépticas com transporte das águas residuais por caminhão. Podemos também considerar a instalação de trincheiras estendidas de infiltração. Tudo isso, atentando para o nível dos lençóis freáticos e a distância das fontes de água.

#SJ: A falta de saneamento básico é um grave problema que assola países subdesenvolvidos e em desenvolvimento. Em países onde há forte migração de pessoas, o problema se torna mais grave?

Rosana: Na verdade, os problemas não são exclusivos ou mais graves em campos de refugiados. Nós raramente vemos uma crise humanitária sem uma crise de água. No MSF, trabalhamos em cidades destruídas por terremotos ou ciclones, que muitas vezes tiveram as suas redes de distribuição de água potável e de esgoto afetados. Ou ainda, as crises hídricas e enchentes também podem provocar insegurança no abastecimento do recurso.

Portanto, em países de baixa e média rendas, os problemas sanitários não são exclusivos ou maiores em campos de refugiados, mas sem dúvida essa é uma questão relevante.  Em geral, os locais com grandes movimentos migratórios não possuem a infraestrutura apropriada para receber a quantidade de pessoas que chega. Essas populações, que já têm acesso precário à saúde, acabam ficando em uma situação de mais vulnerabilidade pela falta de água potável, higiene e saneamento.

#SJ: Quais são os principais fatores que causam os processos migratórios de grupos de pessoas em busca de campos de refugiados?

Rosana: Em geral, os processos migratórios acontecem em consequência de conflitos armados, violações de direitos humanos, desastres naturais e crises econômicas. As populações deixam suas casas, suas raízes e cultura para trás em busca de melhores condições de vida. No entanto, muitas vezes essas famílias acabam em campos de refugiados, em situações precárias de moradia, e precisam da ajuda humanitária para ter acesso a serviços mínimos para sua sobrevivência. E também é preciso dizer que obviamente ir para um campo de refugiados com certeza nunca é uma escolha da pessoa que migra.

#SJ: Que medidas simples e de fácil acesso podem ser implementadas em regiões que sofrem com a falta de saneamento básico?

Rosana: Em pequenas comunidades onde não existe saneamento, latrinas com fossas de infiltração costumam ser bastante aceitas. Elas podem ser construídas em cada unidade habitacional ou uma para cada quatro casas. A mão-de-obra é oferecida pelos próprios beneficiários e o material, que eventualmente tenha que deve ser comprado fora da comunidade é oferecido por MSF. Sempre priorizamos a segurança e a resistência das estruturas, por isso, quando possível, a laje da latrina é pré-fabricada para garantir a resistência e o tamanho adequado para crianças. Asseguramos sempre que o fundo da fossa de infiltração das latrinas tenham 1,5 metro de distância vertical do nível freático e mais de 30 metros longitudinais de fontes de água.

#SJ: MSF chegou ao Brasil em 1991 para combater uma epidemia de cólera na Amazônia. Atualmente, quais são os principais focos de atuação da entidade no país?

Rosana: Desde o início, nosso foco de atuação tem sido as populações vulneráveis e com dificuldades de acesso à saúde, incluindo pessoas em situação de rua, migrantes e comunidades indígenas. Com a chegada da pandemia do novo coronavírus ao Brasil e a rápida expansão dos casos, MSF mobilizou um volume inédito de recursos humanos e materiais e conseguiu rapidamente iniciar atividades direcionadas às pessoas que mais precisavam de ajuda.

A organização ofereceu suporte a sistemas de saúde fragilizados e com dificuldade de responder à forte demanda. Desde abril do ano passado, MSF atuou em 12 estados brasileiros, em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Manaus, São Gabriel da Cachoeira, Tefé (Amazonas), Boa Vista (Roraima), Porto Velho e Ji-Paraná (Rondônia), Portel (Pará), Fortaleza (Ceará) e Patos (Paraíba). Nosso foco principal de trabalho foram as regiões norte e nordeste do país.

Nestes projetos, Médicos Sem Fronteiras mobilizou equipes de emergência para responder rapidamente ao avanço do novo coronavírus, oferecendo suporte aos profissionais de saúde locais para que eles estivessem mais bem preparados para enfrentar a pandemia.

A organização mantém um projeto permanente para reforçar o sistema de saúde no estado de Roraima, que está sobrecarregado com o grande fluxo de migrantes venezuelanos que cruza a fronteira.

#SJ: A falta de saneamento básico no Brasil tem agravado e contribuído para a proliferação de doenças e epidemias? Como a MSF avalia o Plano Nacional de Saneamento Básico (PLANSAB)? Quais são as expectativas e as avaliações da entidade em relação ao plano? Quais medidas e investimentos o Brasil deve priorizar para levar redes de saneamento para as populações mais vulneráveis?

Rosana: MSF é uma organização médico humanitária que leva cuidados de saúde a pessoas afetadas por crises humanitárias. Embora o trabalho com a criação de infraestrutura de água potável e saneamento não esteja no cerne da ação da organização, ele muitas vezes se torna um componente fundamental para conter ou evitar a propagação de doenças. E é com esse foco que nossos profissionais de área de água e saneamento atuam. Nosso escopo de trabalho é focado em garantir acesso à água e latrinas em um ambiente seguro para as populações vulneráveis. Portanto, não temos especialistas em políticas públicas do setor de saneamento que acompanhem de perto os projetos da área e que possam colaborar com essa análise.

#SJ: De que forma as pessoas podem contribuir para o Médicos Sem Fronteiras?

Rosana: Antes de mais nada, é importante ressaltar que o financiamento da organização não governamental e sem fins lucrativos é feito, quase que exclusivamente, por doações de indivíduos de todo o mundo. De todos os recursos recebidos em 2020, cerca de 97% provêm de doadores individuais e da iniciativa privada. Esse suporte é fundamental para manter a independência e a autonomia na realização dos nossos projetos.

As pessoas interessadas em realizar doações podem acessar o nosso site (https://www.msf.org.br/doador-sem-fronteiras). Ou ligar para 4004-5545 (capitais e regiões metropolitanas) ou 0800 940 3585 (demais localidades de qualquer telefone fixo.